O Arquétipo da Prudência
Pe. João Carlos Almeida [1]
Uma hipótese
Estamos buscando uma matriz de compreensão para o processo de discernimento interno à virtude cardeal da “prudência” conforme encontramos em Santo Tomás: recta ratio agibilium [2] . Parece que esta definição é algo mais do que a delimitação da extensão de um conceito. É antes a expressão de um arquétipo antropológico que nos permite entender o mecanismo pelo qual podemos tomar as decisões corretas nas mais variadas situações. Para confirmar esta hipótese faremos uma comparação dos conceitos tomistas com aquilo que encontramos no diálogo paradigmático entre a Virgem Maria e o Anjo Gabriel, registrado no Evangelho de Lucas [3] . Em seguida testaremos a mesma tese em uma leitura rápida da Encíclica Fides et Ratio [4] , de João Paulo II. Escolhemos estes dois textos por vários motivos. Um deles é que, para testar um arquétipo, é interessante comparar com amostras concretas de textos de diferentes procedências e de antiguidade diversa. Dois mil anos separam os textos que escolhemos. O Gênero literário também é diferente, apesar de uma certa confluência de todas as nossas fontes na filosofia e cultura grega. Seria interessante continuar a pesquisa comparando o arquétipo da prudência descrito por Tomás de Aquino com recortes de outras culturas e religiões. Este é um trabalho que fica por fazer.
Veremos que o arquétipo da prudência é composto de várias peças que “fazem funcionar” o processo de discernimento que permite tomar a decisão correta. Queremos explicitar este mecanismo para entender melhor o lugar específico da prudência.
O que diz Santo Tomás [5]
A virtude cardeal da prudência para Santo Tomás não significa aquilo que hoje o senso comum costuma ver neste conceito. Quando se fala que é preciso ser prudente, logo entendemos que devemos ser cuidadosos, cautelosos, não agir precipitadamente. Na verdade Santo Tomás vai mais fundo definindo a prudência como “a reta razão do nosso agir”. Este agir é um ato interno ao próprio agente, mas para ser prudente deve ser inteligível, ou seja, racional. Trata-se aqui não de mera especulação, mas de um intelecto prático que tem como critério a ação em vista de uma finalidade para a qual o sujeito modera seu apetite.
A virtude da prudência é essencial para a vida humana, pois pois como diz o nosso autor, “viver bem é agir bem” [6] . Ora, para agir bem é necessário fazer as coisas do jeito certo, ou seja, por uma decisão correta e não simplesmente por um impulso da paixão. Portanto, para tomar esta decisão é preciso conhecer o fim devido e os meios adequados a este fim. O ser humano está orientado para o bem enquanto fim. É natural buscar o bem. Mas a escolha dos meios depende de um “hábito racional”, uma “virtude intelectual”. Esta é a virtude da prudência, segundo Santo Tomás.
A prudência é como que a “mãe e guia” (genitrix et auriga) das virtudes. Ordenam-se a ela a memória, a inteligência, a docilidade, o raciocínio, etc. A docilidade, por exemplo, é esta capacidade de deixar-se ensinar. É esta abertura à voz do outro. É a capacidade de escuta atenta e obediente (ob-audire). Seria muito interessante aprofundarmos cada detalhe do conceito de prudência em Santo Tomás, considerando atentamente as virtudes que compõe o cenário mais complexo da prudência. Mas já atingimos nosso objetivo pontual de identificar o conceito de prudência como “reta razão do nosso agir”. Agora vejamos de que maneira surpreendente isto aparece no conhecido diálogo entre a Virgem Maria e o Anjo Gabriel e, em seguida, vamos iluminar tudo isso com as propostas da Fides et Ratio.
A Virgem Maria e o Anjo Gabriel [7]
O diálogo entre a Virgem Maria e o anjo Gabriel, registrado logo nas primeiras páginas do evangelho de São Lucas está longe de ser apenas uma bela peça de piedade cristã. É muito mais. Expressa com detalhes o arquétipo do diálogo entre o céu e a terra, entre o humano e o divino, entre a totalidade e a limitação, entre a graça de Deus e a a liberdade humana. Se compararmos este texto com o correlato evangelho da infância de Mateus (1,21) veremos que os fatos são basicamente os mesmos, porém Mateus apresenta o nascimento de Jesus do ponto de vista de José, enquanto Lucas registra o mesmo fato do ponto de vista de Maria. É neste contexto que se insere a perícope da “anunciação”, que estamos analisando. Estamos diante de um gênero literário bastante conhecido das páginas da Bíblia. Trata-se da anunciação. É interessante, por exemplo, fazer o paralelo com outro texto de anunciação contido no Livro de Isaías 7,14: “Eis que a virgem concebeu e deu à luz um filho e ela lhe dá o nome de Emanuel”.
Um estudo exaustivo seria necessário e oportuno. Mas vamos tentar nos fixar no propósito desta pesquisa que é entender o dinamismo interno da virtude cardeal da prudência como arte de decidir. Parece que podemos identificar na atitude da Virgem Maria pelo menos três momentos de uma recta ratio agibilium. Os três momentos poderiam ser assim identificados: retidão (recta), intelecção (ratio) e ação (agibilium). São três passos do mecanismo do discernimento. É uma estrutura paradigmática para a prudência. São três aspectos da fé: a fé que ouve, a fé que pensa e a fé que age. É claro que não estamos nos referindo à fé enquanto conjunto de dogmas religiosos ou como código de conduta moral, mas como adesão confiante e lúcida fruto de um diálogo que gera comunhão. Na verdade seria mais exato falarmos de “obediência da fé”, entendendo obediência não como mera submissão passiva, ou algum tipo de privação da liberdade, mas exatamente como escuta atenta que torna possível o diálogo e a adesão. Obedecer é fundamentalmente ouvir. O discernimento passa necessariamente por este diálogo que nasce da escuta. Só é fé verdadeira se atravessa este processo de prudência. Fora disso temos um caminho aberto para o fundamentalismo e para o fanatismo. A partir desta compreensão podemos ressignificar o sola fide de Lutero, pois a obra (agitur) é necessariamente interior à fé. Católicos e Luteranos têm aprofundado este diálogo com muitos frutos e novos consensos [8] . Vejamos mais de perto cada um destes momentos:
Retidão (recta): Diz o texto:
“Ora, no sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da Virgem era Maria. E entrando o anjo onde ela estava, disse: Salve agraciada; o Senhor é contigo. Ela, porém, ao ouvir estas palavras, turbou-se e pôs-se a pensar que saudação seria essa” (1,26-29).
Trata-se de um diálogo entre “pessoas” que têm nome. Está situado geograficamente em Nazaré, nos arredores da Galiléia. O céu na figura do anjo desce até a terra, ao contrário da tendência da maioria das religiões de subir aos montes para procurar Deus. Tudo acontece com os pés no chão, na realidade “humana”, na História. A primeira frase dita pelo anjo é uma verdadeira pérola que mereceria todo um estudo a parte. Este “salve” ficaria melhor traduzido por “alegra-te” (Khaire). Mas a palavra realmente central este versículo é “Kekharitoméne”, que alguns traduzem por “agraciada” e outros por “cheia de graça”. Esta Kharis (graça) significa a própria auto-manifestação de Deus por meio do seu Espírito. Daí deriva o termo “Carisma”. Ter carisma é ser portador do ânimo divino. Outra palavra em português que deriva do termo Kharis é “charme”. Ficaria muito bem traduzido se colocássemos na boca do anjo a seguinte expressão: “Alegra-te, cheia de charme, o Senhor está contigo”. Aliás, esta última frase é um verdadeiro refrão bíblico (hó Kyrios metá su). Este é o motivo da alegria e da graça: o Senhor está conosco. Lembremos apenas outro texto de anúncio teofânico registrado no livro do Êxodo e que narra o encontro entre o profeta Moisés e Deus na Sarça Ardente (Ex 3). Quando o profeta pergunta o nome de Deus a resposta é “Eu sou aquele que está contigo” (YHWH). Este nome tornou-se impronunciável contra a tendência dos povos vizinhos de utilizar o nome dos deuses de maneira mágica. Além disso, no horizonte de significados da bíblia, o nome contém a identidade mais profunda da pessoa. É por isso que alguns convertidos mudam de nome. Abrão, vira Abraão, Saulo vira Paulo. Esta essência pessoal é definida pela categoria de “presença”. Por isso para o universo bíblico a identidade de Deus é “estar no meio do seu povo”. Poderíamos passar em revista todas as páginas da Bíblia e encontraríamos esta insistência da parte de Deus: “Eu estou contigo”. Para garantir a soberana transcendência de Deus existem recursos literários como a metáfora do “anjo de Javé”, que na verdade é o próprio Deus presente na história. Os profetas e juízes também são sinais da presença de Deus. Além disso, temos as manifestações de providência como o Maná, manifestações de poder como a tomada de Jericó e conquista da Terra Prometida. Em tudo isso o povo acredita na presença de Deus. Por tudo isso é muito interessante que a primeira frase do mensageiro de Deus à humanidade representada em Maria seja exatamente esta: alegria, graça, presença. Mas de nada adiantaria esta manifestação do céu se não houvesse um interlocutor disposto a ouvir (obedecer). Maria é ícone da humanidade atenta e “ob-ediente” (ouvinte). Como diz o saudoso poeta Carlos Alberto Navarro: “És, Maria, a virgem que sabe ouvir, e acolher com fé a santa palavra de Deus (…) Crendo geraste quem te criou, ó Maria, tu és feliz” [9] . Podemos então caracterizar este primeiro momento da dinâmica da prudência em Maria como uma capacidade interior de escuta. Isto aparece claramente na frase seguinte que descreve a reação da virgem: “turbou-se”. A neo-vulgata [10] traduz como “ficou muito confusa”. Esta reação é muito importante, pois é ela que desencadeia o passo seguinte de “pensar no que significaria semelhante saudação”. Há quem traduza como “perturbou-se muito”. Precisamos antecipar as atitudes seguintes de Maria para entender o processo de discernimento contido nelas. Neste versículo 29 descreve-se o “espanto”, no versículo 34 virá a perplexidade (como se fará isso?), no v. 37 percebemos um consolo (para Deus nada é impossível) e finalmente no v. 39 vem a adesão (faça-se em mim). Esta seria a estrutura psicológica da prudência. É um processo de discernimento. Mas tudo nasce desta primeira atitude que chamamos, com Santo Tomás, de “retidão”, ou seja, de fé obediente, de escuta atenta aos sinais de Deus. A pessoa de fé é capaz de ouvir as novidades da Graça. Não vive de certezas congeladas. O fideísmo tem esta terrível doença, vive de certezas dogmáticas que não permitem ao Deus vivo dizer algo de novo. O fundamentalista não pode admitir o discernimento. O fanático não pode ser prudente. Ele não se deixa perturbar. Nega a sua capacidade de maravilhar-se, de ficar “encantado” diante das coisas mais simples onde Deus fala. Nunca ouve nada. Nunca vê nada. Nunca sente nada. Onde começa exatamente a prudência? Penso que é nesta capacidade humana de “turbar-se”. O filósofo sabe muito bem que toda a sua reflexão nasce fundamentalmente do “espanto”, do “assombro”. Não existe filosofia que não seja fruto de um sujeito maravilhado diante de coisas que passaram despercebidas por outros. Filosofar não é exatamente decorar um discurso de escolas, nomes, linguagem técnica e conceitos abstratos. A filosofia verdadeira exige silêncio, escuta e contemplação. Todo filósofo é um contemplativo. Há um momento em que filósofos e poetas se confundem, pois ambos buscam sua inspiração na intuição. No próximo item perguntaremos à Fides et Ratio o que têm a dizer sobre isso. Mas vejamos mais de perto o versículo 29: “Ela, porém, ao ouvir estas palavras, turbou-se muito e pôs-se a pensar que saudação seria essa”. Portanto ela turbou-se diante das palavras. Deixou-se tocar. Ouviu, turbou-se, assombrou-se, ficou maravilhada e pôs-se a pensar. As duas primeiras atitudes desencadeiam uma terceira que é a reflexão. Naturalmente há uma passagem para um segundo estágio deste diálogo de discernimento, prudência e fé: a intelecção!
Intelecção (ratio): A seqüência do texto bíblico que estamos analisando é praticamente um monólogo do anjo Gabriel. Mas não podemos esquecer que no versículo 29 o autor diz que Maria pôs-se a pensar no significado da saudação. Este monólogo angelical é, portanto, uma forma de expressar a própria racionalidade prudente de Maria. Nestas palavras está algo da compreensão humana da proposta divina:
“Não temas, Maria; pois achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Este será grande e será chamado filho do Altíssimo; o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; e reinará eternamente sobre a casa de Jacó, e seu reino não terá fim. Então Maria perguntou ao anjo: Como se fará isto, uma vez que não conheço homem?” (Lc 1,30-34).
A intelecção (ratio) é apresentada aqui em dois momentos. Um primeiro que é o da reflexão diante do espanto inicial. É uma espécie de racionalidade contemplativa. É uma reflexão silenciosa. Depois do espanto vem uma calma, uma paz, uma espécie de solidão reflexiva. É preciso a disciplina da prudência para ordenar todos estes meios sem ceder rapidamente aos apetites. É preciso evitar toda pressa e dispersão. É necessário evitar toda atitude precipitada. Não estamos nem perto do momento de dar uma resposta. O fundamentalista e fanático prefere pular este momento reflexivo, pois é uma área de areia movediça. De certa forma aqui não há certezas absolutas. É claro que esta “incerteza” é subjetiva e não objetiva. Explico melhor: o dogma tem um núcleo de verdades objetivas. Mas é sempre absorvido por um sujeito, passando pela crítica consciente ou inconsciente. Uma vez residente na subjetividade o dogma já não é absolutamente igual à sua formulação objetiva. Por isso creio naquilo que entendo. Ou seja, diante de certas distorções de compreensão o ateísmo é uma alternativa melhor do que a fé. De que adianta crer em uma distorção subjetiva de Deus. Indo mais fundo: alguns ateus insistem em não crer na fantasia de deus que criaram em sua subjetividade. Isto é pelo menos mais sincero do que crer acriticamente em uma fantasia como fazem alguns fideístas mal humorados que além do mais desqualificam o “deus” dos outros. Melhor absolutizar Deus e relativizar nossos deuses. Imagino que apesar de nossos ateísmos, Deus em si crê em nós, pois nele não há desnível entre objetividade e subjetividade. Deus crê nos ateus. Mas voltemos ao texto. Há um segundo momento da ratio. O primeiro foi a intelecção contemplativa. O segundo é a intelecção crítica. A Virgem Maria se atreve a questionar duramente a proposta do anjo a partir de seus conhecimentos: “como acontecerá isso, já que não tenho relações sexuais?” Esta seria a tradução mais correta para o versículo 34, concordam todos os estudiosos. A Tradução Ecumênica da Bíblia traduziu desta maneira e teve que mudar para não ferir a piedade dos leitores da Bíblia. Maria, por sua vez, neste sentido, não foi muito “piedosa” [11] . Preferiu a linguagem direta e árida própria dos semitas nômades do deserto [12] . É como se ela tivesse dito: isto é impossível de acordo com a racionalidade humana. Esta provocação exigirá uma resposta igualmente racional do mensageiro dos céus que virá nos versículos 35-37 quando o anjo explica com detalhes que tudo será obra do Espírito Santo; que algo semelhante já aconteceu com Isabel, grávida de João Batista apesar de sua idade avançada (prova experimental) e finalmente o argumento incontestável: “pois para Deus nada será impossível”. Agora só restaria a Maria tomar a decisão. É o próximo passo da prática do discernimento prudente. Mas ficou um ponto de interrogação em todo este processo. A frase definitiva com que o anjo termina o diálogo parece exigir uma atitude fideísta de Maria. É necessário crer que Deus será capaz de fazer tudo, até o impossível. É um argumento de futuro. Exige uma fé quase cega. Por outro lado esta forma de expressão tem uma certa descontinuidade com os argumentos anteriores, da gravidez de Isabel e das obras do Espírito Santo. Será mesmo que o arquétipo da prudência tem um momento de salto no escuro, de renúncia à racionalidade, de fé cega? Descobrimos que existe outra tradução possível e provável a partir da análise de variáveis nas diversas cópias manuscritas. Por outro lado, ressignificando esta tradução a resposta final de Maria ganha novo sentido no contexto da prudência que estamos analisando.
Ação (agibilium): O primeiro passo foi uma fé obediente, o segundo foi uma fé inteligente. Agora todo este processo desemboca em uma fé conseqüente:
“Disse então Maria: Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra. E o anjo ausentou-se dela” (Lc 1,38).
Esta é outra daquelas frases paradigmáticas e definitivas. A responsabilidade de Maria primeiro se abre em serviço disponível. Não se trata ainda de uma ação prática e voluntariosa. Somente na seqüência do texto isto aparecerá quando Maria sai “às pressas” para ir servir Isabel. É a continuação do processo de discernimento, da prática da virtude da prudência que poderemos analisar em outra ocasião. Já podemos perceber que a prudência não é como uma dessas ferramentas exóticas que temos guardado em algum lugar secreto apenas para serem utilizadas quando eventualmente temos que consertar a hidra do banheiro. Não é nem mesmo como talheres que utilizamos todo dia, mas apenas às refeições. A prudência é uma ferramenta permanente, diária, contínua. É melhor compará-la a uns óculos ou qualquer outro instrumento do qual não nos desfazemos em momento nenhum. Os óculos são um bom termo de comparação porque só o tiramos para dormir. Imagino que possamos esquecer um pouco a prudência durante o sono. A segunda parte da frase provoca uma certa confusão entre os tradutores. Normalmente ouvimos a seguinte versão: “Faça-se em mim segundo a sua palavra”. Na vulgata esta opção remetia à cena da criação retratada no livro de Gênesis, onde Deus diz “faça-se a luz” (fiat lux). No faça-se de Maria estaria um paralelo com o faça-se do Criador. Estaríamos, portanto, diante de uma nova criação. De fato a cena toda de Lucas tem algo de paralelo com o capítulo 1 do Gênesis. Veja por exemplo a expressão em que o anjo diz: “Virá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra” (v. 35). Isto se parece com o caos primordial onde o “Espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1,1) [13] . Mas esta disponibilidade criativa de Maria tem uma racionalidade pré-discernida. Faça-se em mim segundo a tua palavra. Houve um discernimento da proposta, da palavra, do logos. O anjo é mensageiro desta Palavra de Deus. Não é uma entrega absolutamente incondicional. Não é uma fé cega. O critério é a palavra ouvida, meditada, pensada, questionada. Mas uma coisa chama a atenção. no versículo 29 Maria fica espantada ao ouvir a “palavra” do anjo. O texto grego aqui usa o termo logos, para “palavra”. Já neste versículo 38 o texto grego é katá tó remá su, ou seja, utiliza remá para “palavra” ao invés de logos. Por que será que Lucas teria mudado a palavra se existe um explícito paralelo entre o versículo 29 e o 38? Na verdade a palavra remá aparece também no versículo 37 mas fica ocultada na tradução: “para Deus nada é impossível”. O réma, aqui poderia significar “coisa”, “palavra” ou “promessa”. Para dificultar ainda mais, o texto que recebemos diz “pará to Theú pan réma”, o tradicional “para Deus nada é impossível”. Mas parece ter havido uma alteração feita pelos copistas do Evangelho de Lucas para conjugar o texto com a tradução dos LXX que em Gn 18,14 que diz exatamente a mesma coisa: “para Deus nada é impossível”. O copista imaginou que Lucas na verdade teria querido fazer uma paralelo da frase vétero-testamentária, mas teria feito um erro gramatical. Tomaram o cuidado fazer a correção. Porém, o original, quase todos concordam deveria ser “pará tu Theú pan réma”, que poderia se traduzir como “Nenhuma palavra (ou promessa) da parte de Deus será impossível (ou falhará)”. Pode parecer um detalhe insignificante, mas para nossa pesquisa é uma verdadeira guinada, uma mudança de rota. Esta nova tradução resolve o nosso enigma. A palavra de Deus perpassa todo o texto. É mais do que um logos. É mais do que um conceito grego. É uma promessa. Isto nos remete a todo o contexto da aliança no Antigo Testamento. O anjo teria dito algo semelhante ao dito popular: Maria, Deus tarda, mas não falha. Seu argumento é o rema, ou seja as promessas de Deus cumpridas ao longo da história. O sim de Maria, sua decisão prudente, não é feita em base a um salto cego, mas em base a experiência da ação de Deus na história que cumpre todas as promessas que faz. Há aqui uma perfeita comunhão entre fé e razão, de modo que, no arquétipo da prudência, uma simplesmente não pode existir sem a outra. Foi isso que deu a segurança a Maria para toma sua decisão. Não é uma fé ingênua em uma palavra moralmente avalizada por Deus. Deus comprovou sua palavra cumprindo suas promessas ao longo de toda a História. Por isso não temos o que temer. Ele que sempre foi fiel cumprirá o que promete agora. Estamos diante de uma fé segura e prudente. Deus não exige da humanidade uma fé temerária e infantil. Quer uma fé provada no crivo do diálogo e do discernimento. Somente neste crivo da prudência é possível realmente ter fé.
É preciso destacar que este exercício arquetípico da prudência não se resume no mecanismo do discernimento. Ele inclui o momento da decisão. Não basta saber exatamente o que fazer. É preciso fazer. Então temos o genuíno uso da “virtude cardeal da prudência”. Maria disse “faça-se” e fez [14] . É o que disse nosso poeta Geraldo Vandré: Quem sabe faz a hora, não espera acontecer! [15]
O que diz a Fides et Ratio [16]
A partir desta moldura que acabamos de propor para a virtude da prudência como a define Santo Tomás (recta ratio agibilium), confrontada com o arquétipo da Virgem e do Anjo, no Evangelho de São Lucas, sugiro uma tarefa complementar: ler a Fides et Ratio para garimpar alguma contribuição que permita aprofundar cada passo do processo de discernimento prudente que estamos querendo entender melhor.
Em primeiro lugar é preciso concordar que os três passos descritos acima perfazem um itinerário da fé para a razão e da razão para a fé. Há uma articulação entre estas duas faculdades humanas, “como se fossem as duas asas de um pássaro pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” [17] . Aliás, esta tal “contemplação” é também o “espanto” que descrevemos acima como princípio da arte e da filosofia, é a intuição. Existe uma meta, um bem final que é a busca da verdade. Isto Tomás deixa bastante claro [18] . Mas importa verificar os meios utilizados para atingir este fim. A encíclica lembra que realmente o princípio da filosofia é uma espécie de “assombro” [19] . Curiosamente a mesma encíclica vai dizer que a fé provoca um desassombro. Isto mereceria um mergulho especulativo mais denso. Mas nos limitamos a fazer esta pontuação. Escolhemos um texto em que João Paulo II parece resumir o propósito central de sua carta:
“Não podemos esquecer a necessidade que a atual relação entre fé e razão têm de um cuidadoso esforço de discernimento, porque tanto a razão como a fé ficaram reciprocamente mais pobres e débeis. A razão, privada do contributo da Revelação, percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final. A fé, privada da razão, pôs em maior evidência o sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal. É ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida um mito ou superstição. Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma fé adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do ser. À luz disto, creio justificado o meu aplo veemente e incisivo para que a fé e a filosofia recuperem aquela unidade profunda que as torna capazes de serem coerentes com a sua natureza, no respeito da recíproca autonomia. Ao desassombro (parresia) da fé deve corresponder a audácia da razão.” [20]
Este cuidadoso esforço de discernimento é exatamente o que chamamos, com Santo Tomás de Aquino, a virtude cardeal da prudência. Desta maneira, tanto para fazer filosofia como para fazer teologia será necessário exercitar permanentemente a prudência que tem na sua dinâmica interna uma articulação entre fé e razão. Um pensador que prescinda de uma destas duas faculdades humanas certamente será imprudente. Ou seja, não chegará ao fim que se propôs, ou seja, o conhecimento da verdade.
Algumas reflexões finais
O exercício que começamos aqui deverá continuar. Há muitos elementos que precisam ser aglutinados para melhor compreensão da prudência enquanto faculdade de tomar a decisão correta. isto se aplica a todos os âmbitos da vida e não apenas ao explicitamente religioso ou filosófico. É preciso utilizar a prudência no discernimento vocacional, na decisão de comprar um carro novo, mudar de faculdade ou namorar esta ou aquela garota, este ou aquele rapaz.
Deveríamos, por exemplo, apreender as lições de Inácio de Loyola com suas regras de discernimento dos seus Exercícios Espirituais. Precisaríamos reler os filósofos que procuraram, como Kant, entender o dinamismo interno da razão prática, por meio da análise metafísica dos costumes. Seria interessante reler outras páginas da bíblia como a parábola do homem prudente que construiu sua casa sobre a rocha. É o que ouve a palavra e a põe em prática. É exatamente o arquétipo que encontramos no diálogo entre a Virgem e o Anjo.
Fixemos estes três momentos do processo: Retidão, Intelecção, Ação. Certamente será útil quando, num dia desses, um anjo lhe aparecer.